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Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 19 - Um conto divino

05/10/2022 00:00




Capitulo 19 - Um conto divino       (2045)

Nem um minuto a perder! Os desastres ambientais já destruíam cadeias produtivas e apavoraram a maior parte de população. A Assembleia Geral de Emergência Máxima da Organização das Nações Unidas de setembro de 2045 modificou todo o tradicional cerimonial.

Nada de discursos dirigidos ao público interno, reiteração de assuntos que não foram resolvidos por décadas, recriminações por resoluções descumpridas, acusações entre países e muito menos discursos vazios.

Apenas um orador, o Secretário Geral da ONU. Ele usou quatro minutos para seu discurso perante o plenário formado por uns poucos reis, presidentes, primeiros ministros, todos visivelmente preocupados. Cada palavra transmitida pela totalidade de meios de comunicação do mundo.

"Senhores membros das Nações Unidas:

Durante anos a ciência alertou sobre o que poderia ocorrer e, nesta sala, foram realizados inúmeros pronunciamentos e promessas para corrigir o rumo e tentar deter o processo de mudança climática. Com profunda dor, comunico a todas as nações que a mudança climática não tem volta. Sobre isso existe, hoje, unanimidade entre os cientistas. Fracassamos.

Cidades são arrasadas pelas águas e furações, milhões passam sede e fome pelas secas e enchentes descontroladas que impedem boas colheitas. Os refugiados do clima aumentam cada dia. Ficará pior. Teremos mais guerras por comida, energia ou água.

O caos já entrou em grandes setores produtivos e financeiros, cresce a violência. Apenas o começo de uma longa penúria, uma tragédia sem paralelos na história humana.

Grande parte dessa tragédia poderia ter sido evitada. A falta de consciência, excesso de egoísmo, lucro acima de tudo, carência de compromisso, ignorância e alienação conduziram governos e boa parte da população mundial para uma aceleração da radical mudança climática. As nações não se uniram para enfrentar o desafio. Fomos derrotados.

Sabemos da força do instinto humano de sobrevivência, que fará com que, muitos resistam. A maioria da população do Planeta buscará seguir com suas rotinas de vidas. Mas já perdemos milhares de rotinas e de vidas. Serão muitas mais.

Nos próximos anos, que cada indivíduo lute para preservar sua vida. Que o faça com espírito de fraternidade e solidariedade. Consideramos que foi esgotado o arsenal de medidas dos governos para evitar uma enorme tragédia ambiental.

Sabemos que não temos como evitar o pior, porem seguiremos buscando novas soluções paliativas.
Que cada povo da Terra peça ajuda ao seu Deus ou seus Deuses. Peçamos que a Natureza permita que sonhemos com um futuro melhor para as próximas gerações".

Os aplausos coroaram as palavras carregadas de verdade, do homem esgotado e derrotado que desceu lentamente do palco.

Não foi por falta de aviso.

Faziam três décadas que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU informava sobre os muitos impactos do aquecimento global, e que eles eram, simplesmente, "irreversíveis".
Os seres humanos, assim como a Natureza, estavam sendo pressionados para além de sua capacidade de adaptação.

A esperança não foi acompanhada de ações efetivas, coordenadas dos estados, nem pela mobilização da maioria dos habitantes do Planeta. Pelo contrário conflitos bélicos ajudaram a piorar o efeito estufa e a ignorar promessas ambientais, acompanhados da indolência de boa parte da população sobre o tema. Em
duas décadas, o aumento das temperaturas chegou a 2,4 graus Celsius, alertavam relatórios científicos emitidos pouco antes da reunião da ONU de 2045.

Os furacões se multiplicaram fora de suas áreas históricas. O tamanho da calota polar derretida superou em tamanho a superfície do México. As tormentas cresceram em violência. O mundo rumou vertiginosamente para o encontro massivo com a fome e a morte, além do sofrimento constante com pestes e a guerras.
Pelos novos estudos, a percentagem de população "altamente vulnerável" passou a ser de quase 48%, ou seja, que quatro bilhões de seres foram forçados a abandonar suas terras, trabalhos, passar fome, a enfrentar a morte.

Tudo havia mudado para pior. Cidades litorâneas como Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Miami e Nova York eram castigadas constantemente por fortes ressacas com o aumento do nível das águas do mar e de ventos assustadores. Prédios, casas, fábricas, e comércios eram varridos do mapa.

As cidades diminuíam em população, porque faltava emprego e sobravam riscos. No âmbito rural, a violência chegava a níveis extremos. A mudança climática na Terra derivou para um perverso castigo climático.

O chamado Pampa úmido, virou, uma planície estorricada pelo sol assim como o Cerrado, com escassas chuvas e sensíveis quedas nas colheitas de grãos. As queimadas devoraram mais e mais hectares dos bosques remanescentes. O fogo incendiou ninhos de pássaros, esconderijos de todo tipo de animais, aves, insetos e seres humanos. A fumaça deixou cinza o outrora céu azul.

As Cataratas do Iguaçu se transformaram em filetes de água, arrasando na sua decaída o turismo da região a zero. Rios europeus foram transformados em caminhos de pedra e lodo petrificado. Incêndios consumiram o Pantanal transformando espelhos de água em lodo, arvores em cinzas, peixes em artigo de luxo e grandes rebanhos em lembranças de tempos melhores. A Amazônia, compartilhada por sete países, perdeu em cobertura vegetal, o equivalente a uma Europa no período de uma década.

Na Bélgica, furações. Muita neve ou calores insuportáveis em Roma e Barcelona, enchentes e tsunamis no Japão e Malásia. Cresceu o sofrimento da população. A fome avançou silenciosa e diariamente. A contaminação por mercúrio nos rios amazônicos, plástico nas águas de rios e mares e o excesso de pesca industrial acabaram com os peixes comestíveis. A falta de pastagens ou forragem para os rebanhos bovinos, caprinos e suínos reduziu dramaticamente a produção de carne. Pouca água. Muito desespero.

Várias guerras aconteceram por recursos hídricos ou energéticos. Outras guerras eram provocadas por governos inescrupulosos, que usaram um suposto inimigo externo para distrair as massas carentes de comida, abrigo, esperança. Como dar um basta a tudo isso ... era a questão.

O discurso do Secretário Geral da ONU foi o estopim para o disparo de centenas de comunicações entre os líderes das diferentes correntes de igrejas, religiões, crenças populares e representantes de agnósticos e ateus.

Com o perigo de colapso total, houve consenso entre os líderes religiosos para a participação de agnósticos. Os líderes religiosos também aceitaram a participação de personalidades do ateísmo por concluir que mais um bilhão de pessoas que formaram o contingente de ateus no mundo mereciam opinar sobre os caminhos para salvar a Humanidade.

O objetivo inicial foi conseguido. Uma data foi marcada para reunir os chefes máximos do cristianismo, islamismo, agnósticos, hinduísmo, budismo, umbanda, candomblé, judaísmo, xintoísmo, zoroastrismo, taoismo, cultos e crenças de todos os povos.

A busca de soluções para evitar o possível e próximo fim do mundo como conhecido até então foi o argumento que venceu todas as barreiras.

Estabelecer uma regra para a indicação de membros de cada delegação foi motivo de discussões acaloradas. A pressão por encontrar respostas em curto prazo, porém, impulsionou o consenso.
Foi requisito obrigatório a ilibada reputação de cada um dos participantes da chamada Conferência Ecumênica da Salvação. Obrigatório, sem exceções. 

Foi um tema muito delicado, porém foi aprovado.

Bispos, pastores, missionários, pajés, pais de santo, bruxos ou milagreiros condenados em alguma instancia por abusos sexuais, corrupção, extorsão, discriminação racial e outros crimes foram proibidos de participar.
Deveria ser uma Conferência onde o amor ao próximo e a fé fossem os principais temas, e não a ficha criminal de algum líder religioso.

O local da reunião foi outro ponto de tensão entre os máximos representantes das principais correntes religiosas. Entre os líderes do cristianismo, islamismo e judaísmo aconteceram os debates mais acalorados. Os outros quase não se pronunciaram, devido a supremacia dessas três religiões monoteístas que, teoricamente, agrupavam a metade dos devotos do mundo.

Faltou pouco para que a reunião fosse marcada em Jerusalém, cidade que abriga importantes locais icônicos das três religiões mais numerosas em fiéis:

1) O Domo da Rocha, o terceiro local mais importante no Islamismo, que, pela crença, foi de onde Maomé subiu aos céus.
2) Igreja do Santo Sepulcro, local da crucificação, do enterro e da ressurreição de Jesus Cristo, para o Cristianismo.
3) O Muro das Lamentações, parte do Segundo Templo, local sagrado para o Judaísmo.

As necessidades concretas para a realização do gigantesco encontro ecumênico falaram mais alto que os outros argumentos. O local foi escolhido em votação secreta e virtual, mesmo que muitos soubessem da inexistência de secreto na informação que circula pelas nuvens do mundo cibernético. De qualquer maneira, foi realizada a votação.

A decisão foi anunciada: "A Mesquita Alharam, na cidade saudita de Meca, obteve maioria de votos".
Pesaram os argumentos de ser o maior centro de peregrinação do mundo e o lugar mais sagrado do Islamismo, religião com mais fiéis depois do cristianismo. Foi negociado entre os monoteístas que a estátua do Cristo Redentor do Rio de Janeiro seria aprovada para a realização de uma possível cerimônia futura da Cúpula Ecumênica. Não houve prêmio de consolação para Jerusalém.

O número máximo de participantes foi de "setenta vezes sete", por iniciativa dos crentes na Bíblia.
Finalmente, chegou o dia em que os representantes religiosos, agnósticos, ateus e assemelhados começaram a chegar a Meca, para buscar uma resposta divina perante a dimensão da catástrofe ambiental que crescia sem cessar.

Alguns chegaram em cima da hora da abertura dos trabalhos. Furações, tornados, nevadas, inundações, deslizamentos em estradas que levavam aos aeroportos foram os principais motivos dos atrasos dos jatos que voavam a mais de dois mil quilômetros por hora.

Um religioso belga inscrito na Confêrencia morreu durante um furacão tropical em Bruges que nunca antes tinha registrado esse fenômeno. Outro religioso da Sibéria teve um infarto como consequência do calor inesperado de 54 graus.

Um evangélico se afogou na alagada savana sul-africana. Um cardeal argentino não pode comparecer devido aos graves ferimentos causados por uma onda de 10 metros do Rio da Prata, que arrasou a pista da Aeroparque, em Buenos Aires.

Três religiosos morreram em deslizamentos de terra depois de chuvas torrenciais sem precedentes em localidades brasileiras, já calejadas nesse tipo de catástrofe. Um pastor, convocado de Petrópolis no Rio de Janeiro, outro de Contagem em Minas Gerais e um sacerdote de Franco da Rocha na região metropolitana de São Paulo. 

Cinco líderes religiosos americanos chegaram atrasados pelo cancelamento de vôos causados pela neve de dois metros no leste dos Estados Unidos. Dois bispos australianos faltaram ao ficar isolados pelas enchentes numa região que até poucos anos era um deserto.

As vítimas no mundo pelas mudanças climáticas faziam esquecer os milhões de mortos no mundo, da última pandemia. "Para esquecer uma grande tragédia basta outra mais recente", comentou um dos religiosos.

Todos juntos rezaram, oraram, clamaram pela ajuda de Deus, dos Deuses, cada grupo a sua maneira, unidos como nunca antes a História tinha registrado. "Ajuda" foi à palavra que o Conclave aprovou por unanimidade a ser elevada a Deus, com a força de todos os habitantes da Terra.

No âmbito político das Nações Unidas, os governos dos países membros travaram homéricas batalhas e foram alcançando acordos para diminuir a marcha da catástrofe. Foram tomadas medidas drásticas para reduzir efetivamente a poluição do ar, contaminação de rios e mares.

Aprovada uma mudança completa dos padrões energéticos. Proibido todo desmatamento por seu impacto no regime de chuvas e temperaturas. Fechadas as fábricas cujo funcionamento elevasse significativamente a temperatura da área. Limitada drasticamente a circulação de veículos. Cortados 70% dos vôos comerciais. Desta vez os acordos passaram a ser honrados.

Foi montada uma rede entre os países detentores dos satélites, para que todo atentado ao meio ambiente, fosse divulgado imediatamente a todos.

Além disso, criou-se uma Força de Intervenção, com o poder de invadir todo território cujo governo encorajasse qualquer tipo de destruição da Natureza, ou fosse incapaz de controlar algum processo interpretado como ameaça ambiental para o resto da Humanidade.

As forças de reação da Natureza perante a sua destruição não reconheciam fronteiras estabelecidas por antigos impérios, por invasões, pilhagem ou pelo direito internacional moderno. Não havia tempo para cerimônias com fronteiras ou bandeiras. Os furacões arrasavam, os rios transbordavam, os mares avançavam, as geleiras derretiam sem mostrar passaporte para atravessar fronteiras criadas pelos humanos.

Um trabalho conjunto, sem delimitações. As soberanias, antes utilizadas como escudos desapareciam, pela razão ou pela Força de Intervenção criada pelos membros permanentes no Conselho de Segurança. As maiores potências mundiais perante a emergência planetária total, acordaram em eliminar o direito a veto, que imperou no Conselho de Segurança desde a sua criação.

Vários países fora do Conselho de Segurança se opuseram inicialmente. Foram convencidos a aceitar pelas vias diplomáticas, por sanções duríssimas, ou pelas "operações diretas" da Força de Intervenção. Ela era integrada por efetivos de forças especiais dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. 
Essa Força não tinha sido criada como golpe publicitário, era verdadeiramente para valer.

A Força de Intervenção contava com equipamentos de última geração e com os maiores especialistas em guerra cibernética, além de comandos especiais para desestruturar qualquer governo do mundo em 12 horas, com "poucos danos colaterais".

Se algum rei, presidente ou primeiro-ministro pensou que era um blefe, ficou só no pensamento porque nenhum deles pagou para ver. Não queriam correr o risco de serem qualificado como "danos colaterais".

Toda regra tem exceção. Um presidente sul-americano atreveu-se a desafiar a essa força militar e tecnológica fruto da união das maiores potências. Anunciou planos de megamineração e de liberação de garimpos, criação extensiva de gado e plantação de grãos em regiões ainda preservadas da selva amazônica.

Quinze horas depois do anúncio, esse presidente foi capturado por um comando da Força e levado a um hospital psiquiátrico na Coréia do Norte.

Só faltava, em matéria de consenso, entre religiões e governos de todo o Planeta, que Deus aparecesse nesse momento único.

Deus não apareceu com imagem ou semelhança a um ser do Planeta Terra. Deus chegou a cada um e a todos os humanos da Terra, de sua todo-poderosa maneira:

"Sou Deus. Estou agora na mente de cada um de vocês, humanos da Terra. Minha mensagem chega na língua de cada um de vocês. Estou me comunicando com a voz do ser mais amado de cada um para chegar a todos os corações, num momento de união nunca visto desde que os humanos se multiplicaram na Terra.

Vocês conseguiram fazer armas nucleares para desintegrar o Planeta que agora dizem querer proteger. Transformaram grandes invenções em ferramentas para matar, como aviões, raios laser, submarinos. 

Criaram sistemas de comunicação entre os homens por onde o ódio avançou e a ignorância espalhou.
Quando sobra comida não conseguem distribuir alimentos para todos. Calculam exatamente a hora que o Sol se põe e pouco se emocionam perante esse espetáculo diário.

Seguem buscando novas armas para se proteger. É uma ilusão desastrosa a ideia de conseguir segurança por meio do armamento. A paz não será alcançada quando se tem em mente um próximo conflito.
Sabem pouco ou nada de Amor. Um amor que os faria felizes e pacíficos, em harmonia com outros mamíferos, aves, peixes, plantas, com Deus.

Vocês me chamam por diferentes nomes. Estou em cada partícula de tudo. Sou a energia cósmica.
Estou em cada ser humano e os milhares de espécies de mamíferos, algumas com DNA quase igual ao de vocês, como a dos chimpanzés.Estou nas flores, na brisa, nas profundezas do mar, na neve das montanhas, numa caricia, num olhar de compaixão.

Sou o Criador.

A Natureza tem regras, e vocês violaram quase todas. Ela não é inimiga. Vocês a forçaram a buscar o reequilíbrio e agora clamam por ajuda divina para enfrentar os efeitos da mudança do clima.

A atual união global está empurrada pelo medo e não pelo amor. Não adianta rezar, orar, clamar ou louvar meu nome em alta voz se não amam de verdade cada ser vivente. Sou pássaro, planta, árvore, gota de mar, rio, fonte ou orvalho.

Fazem guerras invocando o meu nome. O Inferno que muitos temem existe. É o que vocês criaram com desamor e desprezo à vida. Sem paz por tanta injustiça e hipocrisia.

Toda essa Natureza é para desfrutar e proteger vossas vidas. Estou na Natureza. Estou perto dos que tem fé sincera. A Natureza é o meu templo maior.

Certamente não encontrarão minhas respostas em templos, utilizados para lucrar materialmente com a boa-fé de muitos. Nem nas arengas castrenses ou nas humanas bendições de armas.

Se todos os recursos aplicados em produzir inventos para matar fossem para recuperar ar, solo e água, o meio ambiente estaria longe da aflição. Se todos os homens e mulheres treinados para matar fossem mandados a plantar árvores, limpar rios e proteger fauna e flora, a humanidade não estaria pedindo milagres.

Deixem de jurar ou sacrificar a vida por bandeiras ou territórios. Vivam para amar. Se ficassem unidos no amor, todas as respostas ficariam claras.

Sejam respeitosos, tolerantes, amorosos como filhos de um planeta, que tudo oferece para uma vida plena.
Não julgo, não condeno, não castigo. Sou puro amor. O amor é o único caminho..."


Imagem: A Criação de Adão, Michelangelo



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