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Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 14 - Inacreditável: Obra sem demagogia

05/10/2022 00:00




­Capítulo 14 - Inacreditável: Obra sem demagogia   (1988)

A operação teve sucesso total. As águas límpidas do Paranoá se transformaram em centro de esporte e lazer e aumentaram a oferta de água potável para Brasília

Como a OEA tinha uma Subsecretaria de Cooperação Técnica, viajei por quase todos os estados brasileiros para abrir ou fechar seminários, cursos, oferecer ou entregar bolsas de estudos, e também, para acompanhar tarefas científicas em universidades. Um desses programas me permitiu acompanhar o nascimento e a realização de uma grande obra, sem demagogia, em Brasília. Milagres acontecem.

O Lago Paranoá fedia nos dias quentes de 1986. E isso somente parou quando foi deslanchada uma operação, sem politicagem nem barulho, para despoluir as águas da capital da República. Deveria ser regra a luta pelo bem comum por parte de todos os administradores públicos. Lamentavelmente é exceção. Uma dessas exceções salvou as águas do Lago Paranoá, em Brasília.

Algas proliferavam ocupando boa parte do espelho de água, que foi criado para composição paisagística, lazer, melhoria no microclima da região e geração de energia elétrica. A decomposição das algas tornava impossível ficar perto das margens nos dias de alta temperatura. 

O lago de Brasília se encaminhava para ser mais um desastre ambiental, somente que na capital do maior país latinoamericano.

José Aparecido de Oliveira era o governador de Brasília, escolhido pelo presidente José Sarney, num tempo em que ainda se pensava nesse cargo como um poderoso chefe de cerimônia que administrasse bem a sede do Governo Federal. Não existia, Câmara Legislativa do DF nem eleições para governador no Distrito Federal.

Após jantar no Palácio de Itamaraty para recepcionar um presidente estrangeiro, Aparecido me pegou pelo braço e convidou para conversar no dia seguinte, no seu gabinete.

Nesse tempo, a Organização dos Estados Americanos (OEA) no Brasil desenvolvia cinquenta e cinco projetos técnicos de cooperação e desenvolvimento no país, e contava com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como agente financiador de vários deles.

"O estado do lago Paranoá é uma vergonha, todos reclamam e não tenho recursos para fazer muita coisa", lamentou o governador nascido em Minas Gerais, que me instou a buscar soluções para despoluir o lago.
Na lista da OEA, figurava um apoio com modesta quantia de dólares ao ano para um projeto de limnologia (do grego limne, lago e logos, estudo), desenvolvido pela Universidade de São Paulo (USP) no seu campus em São Carlos (SP), a cargo do professor José Galizia Tundisi.

Fui nessa mesma semana a São Carlos, onde Tundisi me recebeu calorosamente e deu uma luz à minha total ignorância sobre a situação de lagos do mundo e do Brasil. Ao fim da explicação, joguei duro: "Professor, o lago mais importante de todos os lagos do Brasil e do mundo é o Paranoá e o senhor tem que resolver!".

Tundisi sabia muito sobre o lago Paranoá e me explicou que era uma poluição simples, sem metais pesados, porque os detritos da cidade eram despejados no lago sem tratamento e, com excesso de nutrientes, aumentava o fósforo e nitrato nas águas.

O projetado anel sanitário captando esgoto e evitando o despejo no lago não tinha sido construído. Na pressa por entregar Brasília rápido, no tempo do presidente Juscelino Kubitschek, ele não tinha sido construído.

O professor viajou à Brasília onde se encontrou com os especialistas da CAESB (Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal). Já se conheciam e se respeitavam. Em poucas semanas foi preparado um projeto que definia os padrões técnicos de monitoramento e suas soluções. Por exemplo, usinas de tratamento de esgoto nas partes Norte e Sul do lago para reverter a eutrofização.

Com o projeto á mão, José Aparecido me disse que precisava de mais um favor: Que eu falasse sobre o lago Paranoá com os senadores e deputados integrantes de uma comissão para acompanhar os assuntos do DF (Distrito Federal). Aparecido dizia que a maioria dos parlamentares dessa comissão era contra tudo que ele propunha.

Respondi que, como representante de um organismo internacional, não podia me intrometer tanto.
O governador então chamou seu assessor de imprensa. Organizou-se uma entrevista na qual expliquei que tinha apresentado ao governador ideias de renomados técnicos para despoluir o Paranoá.

Alentado por Aparecido, externei a incongruência de tentar convencer outros países da alta tecnologia dos aviões brasileiros quando o país sequer conseguia despoluir o único lago artificial da sua nova capital. A Embraer buscava voos mais altos em vários mercados, nesse tempo.

O comunicado de imprensa do governo do DF com minhas declarações, espontâneas ou não, foi enviado a cada um dos membros da comissão parlamentar. Os parlamentares preferiram bater em Aparecido por outros temas, para eles mais relevantes, do que atrapalhar o projeto de despoluição ou fazer demagogia sobre o tema.

O governo se mexeu rápido e sem alarde. Apresentou o projeto completo e o pedido de financiamento para o BID, que acabou liberando em torno de U$100 milhões para a despoluição e construção das usinas de tratamento do lago, de 48 km2. As usinas passaram a ser em pouco tempo uma realidade donde as águas eram tratadas e os resíduos utilizados para adubar plantações de verduras e grãos.

A operação teve sucesso total. As águas límpidas do Paranoá se transformaram em centro de esporte e lazer e até ajudaram a melhorar a oferta de água potável de Brasília.

Tundisi foi presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) de 1995 a 1999 e publicou mais de duzentos trabalhos em revistas especializadas de 13 países. Seguiu repassando conhecimentos.
Aparecido foi Ministro de Cultura e embaixador brasileiro em Portugal. Faleceu em 2007. O BID manteve-se atuante como banco de desenvolvimento. A OEA continuou como foro regional, expondo as coincidências e diferenças e minorar as consequências dos desentendimentos.

Até hoje ficou emocionado por ter participado das primeiras "conspirações" para a realização de uma obra que beneficiou a tantos, realizada sem demagogia.

Sem medo da diplomacia

O Itamaraty foi generoso quando a OEA pediu o meu agrément para desempenhar o cargo de representante do organismo no Brasil. O pedido foi enviado de Washington pela manhã e a resposta positiva de Brasília chegou pela tarde.

Cheguei á Brasília decidido a dar o melhor de mim para apoiar o magnífico trabalho do meu chefe o Secretário Geral, Baena Soares, desde a audiência para apresentar credenciais ao Ministro das Relações Exteriores, Abreu Sodré.

Depois de troca de informações sobre assuntos políticos que estavam na agenda da OEA, pedi ao Ministro se podia fazer um comentário, pessoal. Aceitou. Eu disse que assumia a missão com certa angústia porque os americanos comentavam que existia desinteresse de Itamaraty pela gestão do Baena Soares, já que Brasil estava atrasado nas contribuições financeiras ao organismo.

Disse que esse débito não contribuía para fortalecer a posição do diplomata brasileiro no máximo cargo da OEA, que precisava de um apoio explícito e concreto do Itamaraty. Que seria importante, por tanto, que a situação fosse corrigida. Apresentei minhas desculpas por tocar em um tema da exclusiva alçada do governo brasileiro. Abreu Sodré somente assentiu com a cabeça. Pouco depois encerrou a agradável audiência.

Uma semana depois, fui informado de que Brasil tinha depositado o total dos fundos em atraso. Obviamente, que a decisão deve ter provocado desconforto nos organismos internacionais, onde também existiam atrasos no pagamento de quotas, e no próprio setor de administração do Ministério. Era um problema, dos outros. Eu jogava o melhor possível, para o meu time.

Sim, eu participava dos banquetes para receber mandatários estrangeiros, dos coquetéis nas representações diplomáticas, jogava tênis ou golfe com autoridades. Mas era a façe charmosa da função. A pedreira estava escondida aos olhos da maioria.

Eu tinha a missão de supervisionar o andamento dos projetos, representar a instituição em atos públicos, manter as melhores relações com os diferentes ministérios e as embaixadas dos países membros, e proteger a imagem da OEA e a do seu Secretário Geral brasileiro.

Já tinha avisado a conhecidos fofoqueiros de Brasília que defenderia meu chefe e a OEA das intrigas palacianas com todos os recursos possíveis, elogiáveis ou não, porque Baena Soares estava fazendo história pela sua independência e competência no cargo.

A missão era realizada no país do secretário-geral, trabalhando muito perto do Itamaraty, quando o país ampliava sua credibilidade internacional.

Tudo ia razoavelmente tranquilo até que. em 1986, chegou o novo embaixador dos Estados Unidos a Brasília, o experiente diplomata de carreira, Harry Shlaudeman, um cavalheiro, dou fé.

Como todo diplomata experiente sabia que nada controverso poderia ser dito sobre as relações bilaterais até apresentar credenciais ao Presidente da República. Assim fez o veterano diplomata no aeroporto de Brasília ao ser entrevistado pelos jornalistas.

Habilidosamente passou por vários temas bilaterais delicados. Foi interrogado sobre as relações hemisféricas. O raio caiu! O embaixador americano disse que os Estados Unidos consideravam que os interesses do seu país não eram atendidos na OEA. Quase cai da cadeira quando li as declarações nos dois principais jornais do DF.

No dia seguinte conversei com o colunista diplomático do Correio Brasiliense, Manuel Mendes, para pedir que publicasse declarações minhas sobre a entrevista do diplomata americano. Declarei que: "o digníssimo embaixador americano está certo na sua apreciação. A OEA e o seu Secretário Geral não atendem aos interesses nacionais americanos ou de um outro país. A OEA e seu secretário-geral seguem apenas as diretrizes da Carta e as decisões emanadas dos consensos ou votações entre todos os países membros".

O clima ficou tenso.

Semanas depois, numa recepção conversei com um assessor do embaixador e manifestei que lamentava os inconvenientes possivelmente causados, porém era o meu dever profissional defender a OEA e seu Secretário Geral, principalmente na sua casa. O recado chegou ao veterano diplomata.

Dias depois fui convidado a tomar um café com Shlaudeman na embaixada. Foi uma conversa agradável com o embaixador que tinha chefiado anteriormente as embaixadas na Venezuela, Peru e Argentina. 

Reiterei que lamentava o episódio, porém estava agindo como exigia meu cargo. Olhou para mim com certa aprovação. Como deter as fofocas, perguntei e eu mesmo respondi: "Uma imagem vale por mil palavras".
O assistente do embaixador chamou o fotógrafo. No dia seguinte o mesmo Correio Brasiliense publicou a foto do Shlaudeman e eu sorridentes com as xícaras de café na mão, apenas com legenda identificando as duas pessoas, sem texto. O episódio ficou ali encerrado.

Os raios podem cair sim, no mesmo lugar.

Dois meses depois de acertado o tema com Schlaudeman chegou à Brasília o primeiro embaixador de Cuba depois de reatamento de relações com o Brasil, cortadas durante o regime militar. Era Jorge Bolaños, um dos seis vice-ministros de Relações Exteriores do regime de Fidel Castro e ex-embaixador cubano na Polônia, Checoslováquia e Reino Unido. Um peso pesado da diplomacia cubana.
No aeroporto do DF uma nuvem de jornalistas entrevistou um embaixador cauteloso com as declarações sobre as relações bilaterais. O embaixador cubano aproveitou uma pergunta sobre a OEA e fez uma dura observação sobre o suposto alinhamento da organização regional aos interesses americanos. Anos antes o regime cubano tinha definido a OEA como "Ministério de Colônias" dos Estados Unidos.

O procedimento repetiu-se. Chamei o colunista Mendes para que publicasse meu desejo de sucesso ao novo embaixador cubano agregando que "era evidente que os longos anos da suspensão de Cuba das atividades da OEA tinham tornado obsoletos seus conceitos, ao ser privado de acompanhar os avanços do organismo com um diplomata brasileiro como Secretário-Geral". Assim foi publicado. Eu sabia que o clima agora estava tenso com o homem de Fidel em Brasília.

Dias depois numa recepção na embaixada do México, o anfitrião me chamou para me apresentar a Bolaños. O cubano levantou seus braços e teatralmente clamou: "Hermano, te juro que en Brasília nunca mas pronunciaré la palabra OEA". Estreitamos nossas mãos com força. Bebemos um longo drinque, conversamos e rimos muito. O assunto foi encerrado para sempre.

Bolaños e eu tivemos uma respeitosa relação social-diplomática. Esse competente embaixador cubano me convidou a ir à Cuba. Agradeci e disse que não seria possível eu ir na qualidade de funcionário da OEA porem eu visitaria a ilha sem passaporte diplomático, como simples turista, com a minha passagem e passaporte nacional, Assim aconteceu pouco tempo depois dessa conversa, na primeiras e merecidas férias.

Em 1990, o Paraguai e a União Soviética não mantinham relações diplomáticas, cortadas durante o regime do general Alfredo Stroessner. Nesse ano a OEA tinha marcado a sua Assembleia Geral em Assunção. O jornalista soviético Vladimir Golenkov era o correspondente da agência Tass em Brasília e queria fazer a cobertura da reunião do organismo regional. Nada de visto.

Pedi audiência com o embaixador do Paraguai e durante a mesma argumentei que esse país tinha que conceder visto, sem restrições, a todos os jornalistas profissionais interessados na cobertura da reunião do organismo regional, como sinal de consideração a esse encontro dos ministros de relações exteriores dos países membros.

Finalmente Golenkov recebeu um visto de turista e chegou a Assunção, onde recebeu a credencial de imprensa da Assembleia da OEA e fez a cobertura da reunião. O jornalista soviético foi um dos principais astros no âmbito do encontro porque a imprensa de Assunção deu o maior destaque para a chegada do primeiro cidadão da URSS ao Paraguai, quando não haviam relações diplomáticas entre eles.

Ao seu triunfal regresso de Assunção, Golenkov e eu compartilhamos algumas vodcas na companhia de outros queridos amigos jornalistas: Luiz Recena, Walter Sotomayor e Francisco Figueroa.
Apesar das altas emoções e de muita adrenalina, nessa época consegui escrever o livro "Comunicação e Desintegração na América", que foi lançado em 1990 pela editora da Universidade Nacional de Brasília.
Cristovam Buarque, então reitor da UnB e depois governador do DF, Ministro de Educação, e senador, foi quem deu a última revisada no texto antes de ser enviado à gráfica para ser a primeira obra da serie Pensamento Latinoamericano da universidade.

O melhor desse livro foi o concorrido e animado lançamento, no entrepiso do Teatro Nacional de Brasília, acompanhado por uma banda de salsa caribenha, e prestigiado por vários acadêmicos e políticos, colegas jornalistas e diplomáticos, muitos amigos e alguns curiosos.

Revelo aqui o real motivo do sucesso do lançamento. Um amigo jornalista enviou um reporteiro para me entrevistar para um noticioso do meio-dia de um importante canal de TV, na data do lançamento. A uma das perguntas respondi "...não posso julgar se o livro será útil o não, porém, asseguro que o whisky que servirão no lançamento é doze anos.."

Ao reunir estas lembranças do passo pela diplomacia, que refletem fielmente o acontecido, aproveito para afirmar que tive a fortuna de trabalhar e lidar com profissionais de elite.

No Itamaraty fiz excelentes amizades e aprendi com grandes professores, entre eles Luiz Felipe Lampreia, Osmar Choffi, Paulo de Tarso Flecha de Lima, Marcos Azambuja, José Botafogo, Luiz Seixas Correa, Sebastião do Rego Barros, Pedro Motta, Cesário Melantônio, Leda Camargo, Pedro Luiz Rodrigues, José Vicente Pimentel, Rubens Ricupero, Bernardo Pericás e João Clemente Baena Soares. 

Também aprendi muito com Fausto Godoy e Paulo Roberto de Almeida. Tratei bastante, primeiro como terceiros secretários e anos depois como embaixadores, a Rodrigo Baena Soares e Norton Rapesta. Rodrigo e Norton, que chefiavam as embaixadas na Rússia e Ucrânia quando explodiu o conflito entre esses países.

 A todos eles, profissionais de delicadas missões para buscar o máximo de paz num mundo insensato, minha gratidão.

Imagem: Lago Paranoá, Pontão Lago Sul



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