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Hechos y delirios
Capitulo 11 - Memórias de uma guerra

05/10/2022 00:00




­Capitulo 11 - Memórias de uma guerra     (1982)

Mais informação e dados históricos ajudam a entender melhor a Guerra das Malvinas onde quase se chegou a utilizar armas nucleares.

Se passaram mais de 40 anos da Guerra das Malvinas. O conflito transcorreu de abril a junho de 1982. Ficaram lembranças que o tempo não apaga e um entendimento mais amplo do desvario humano.

Foi um conflito bélico pelas ilhas austrais situadas a 400 milhas da costa patagônica. Uma guerra pelo domínio dessas ilhas frias que inicialmente foram ocupadas pelo Império Espanhol. As Províncias Unidas às herdaram depois da vitoriosa guerra de independência liderada por José de San Martín e Simon Bolivar do lado sul-americano.

O comerciante de Buenos Aires, Luis Vernet foi enviado pelas Províncias Unidas para governar as ilhas em 1829. Vernet governou durante quatro anos. Em 1833, uma frota inglesa invadiu as ilhas e expulsou o governador, ação que motivou que o governo do Brasil emitisse dias depois da invasão uma nota de apoio à Argentina. Mas a lei do mais forte vale mais que a lei da maioria ou opiniões de outros.

Esses detalhes legais ou históricos pouco importavam para o império britânico que as colocou sob o manto real. Assim, a Grã-Bretanha passou a explorar inicialmente a caça às baleias e depois peixes, gás, petróleo e no futuro quase certamente - eu aposto - instalará uma estratégica base militar na Cone Sul.

Durante décadas a ONU aprovou um monte de resoluções para que a Grã-Bretanha abrisse negociações com a Argentina sobre as Malvinas. Como existe o poder de veto no Conselho de Segurança por parte de cinco potências, entre elas a Grã-Bretanha, nada foi adiante quando Argentina insistiu na sua soberania sobre as ilhas.

Em 2 de abril de 1982 o desgastado regime militar argentino jogou a sua última carta para manter apoio entre a população, ao recuperar as ilhas, porém estabelecendo "não derramar sangue britânico nem destruir propriedade britânica". Assim aconteceu. Pensaram que a Grã-Bretanha não iria à guerra se não houvesse derramamento de sangue.

Erraram. Os militares argentinos ignoraram que a primeira-ministra Margaret Thatcher estava despencando em popularidade e nada como uma guerra para unir a parcela menos iluminada ou simplesmente ignorante da sociedade.

O regime militar de Alejandro Galtieri apostou que contaria com o apoio ou a neutralidade dos Estados Unidos como prêmio a participação de oficiais argentinos no treinamento de mercenários chamados "contra" que combateram o governo sandinista na Nicarágua, que os americanos buscavam desestabilizar. Aposta perdida num outro grande erro de avaliação.

Grã Bretanha foi à guerra e teve o apoio logístico e militar dos Estados Unidos.

O Atlântico Sul esteve a ponto de ser cenário do uso de armas nucleares por parte do Reino Unido, o que configuraria o horror dos horrores. Thatcher mandou uma frota improvisada. Porém dois porta-aviões e um torpedeiro carregaram um total de 31 armas nucleares. A potência europeia não podia perder essa guerra. 

E se Grã-Bretanha tivesse utilizado as armas nucleares?

Seria o primeiro ataque com armas nucleares desde 1945, quando Estados Unidos bombardeou as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, na Segunda Guerra Mundial.

Felizmente, a diplomacia do Foreign Office e o presidente francês François Miterrand convenceram Thatcher a descartar as armas atômicas. Seria uma violação do Tratado de Tlatelolco que veta as armas nucleares no Atlântico Sul e o inicio de um capítulo histórico mais do que perigoso.

Sobre o Tratado de Tlatelolco, cabe explicitar que as grandes potências nucleares nunca se sentiram comprometidas pelo protocolo adicional que as convidava a não introduzir armas nucleares na América do Sul. O Brasil e a Argentina nunca colcaram o tratado em vigor por causa dessa lacuna. Foram os presidentes Fernando Collor e Carlos Menem que dispensaram essa obrigação, para tornar lei o Tratado nos dos países.

Também logo depois de ser lei o Tratado, foi criada a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).

A primeira guerra não se esquece. Fiz a cobertura desse que foi o maior conflito no Atlântico Sul desde a Segunda Guerra Mundial para a agência americana de notícias United Press Internacional (UPI). Minha primeira guerra como correspondente.

Eu fui enviado a Buenos Aires ainda em março, uma semana antes do desembarque argentino em Porto Stanley, quando houve "um incidente" nas ilhas Georgia, no Atlântico Sur, mal contado pelos governos ingleses e argentinos.

Dois dias depois da chegada a Buenos Aires expliquei ao editor Abel Dimant, editor do serviço latino-americano, que deveríamos esquecer o "slug" ou identificador "incidente no Atlântico Sul" e colocar diretamente "guerra das Malvinas" porquê os argentinos ocupariam as ilhas. O argumento foi de uma lógica impecável: "A loucura está aqui solta por toda parte".

Aconteceu. A sensação do palpite certo foi desconfortável, quase como predizer que tal avião vai cair ou o que prédio de uma escola ruirá.

As tropas argentinas desembarcaram em 2 de abril de 1982, rendendo a pequena guarnição inglesa, que não teve nenhuma baixa. O governo britânico anunciou o envio da frota às ilhas.

O Itamaraty empurrou na ONU uma resolução sensata que basicamente determinava que a frota britânica detivesse a sua navegação às ilhas e os argentinos as desocupassem e entregassem a sua administração temporária para as Nações Unidas, com os lados concordando em negociar. Não houve acordo. Bom lembrar que Grã-Bretanha tinha poder de veto no Conselho de Segurança.

A partir do desembarque das tropas argentinas passei a buscar uma poderosa fonte militar que pudesse proporcionar boa informação, sabendo que sempre os comunicados oficiais nas guerras são demorados, imprecisos, omissos ou simplesmente mentirosos.

Convidei para um café o capitão retirado da Marinha, Carlos Massera, que tinha conhecido anos antes no Rio de Janeiro como diretor da empresa que gerenciava a frota mercante estatal. Massera era irmão de Emílio Massera, o todo-poderoso almirante que tinha saído da Junta Militar antes do conflito.

Tinha informação confiável que Carlos Massera era da inteligência da Marinha. Num tranquilo bar do centro portenho, expus que queria receber informação boa e rápida do lado argentino porque os britânicos já estavam operando muito bem nesse campo.

Propus identificar as fontes apenas como "fontes militares" e que as informações recebidas não seriam modificadas. Assim foi a minha proposta. "Vou consultar", foi à resposta. Acabou o café e saiu do bar na Avenida de Mayo.

Dois dias depois outro café foi marcado por ele, num barzinho no Paseo Colón. "O país está em guerra e você sabe as regras para todos os cidadãos", lembrou-me. Imediatamente veio a imagem de um quadro de Goya, um homem de camisa branca abrindo os braços perante um pelotão de fuzilamento. Apesar da imagem, consegui gravar dados fundamentais para entender os próximos dias de guerra.

Massera comentou, com luxo de detalhes, que a frota britânica foi preparada as pressas, que vários navios careciam de blindagem, ou seja, que a receber impactos de foguetes se transformariam em verdadeiros fornos de metal, além de ser facilmente afundáveis. Passou vários minutos destacando a preparação da aviação argentina, e disse que teríamos "muitas surpresas".

Foi pessimista, no caso, de haver o desembarque de tropas britânicas nas ilhas. Era limitada a preparação e fraca a logística das tropas terrestres argentinas, porque os efetivos mais preparados para esse terreno estavam na montanhosa fronteira com Chile, que a cúpula castrense considerava país "não confiável". Massera reafirmou "tudo tem de ser decidido no mar". Foi combinado que, periodicamente, alguém telefonaria a UPI e me passaria informações. Nunca mais vi ou soube dele.

A informação mais relevante que recebi por essa via foi no dia 4 de maio, transmitida por um homem de voz grossa e seca. Foi de um dos primeiros ataques da aviação argentina à frota britânica, realizado com caças e mísseis de fabricação francesa.

Foi um "furo mundial". "Aviões argentinos atacaram com mísseis a frota britânica, informaram fontes militares". Foi mais ou menos assim o flash que redigi enviado pela UPI e que foi reproduzido por milhares de meios de comunicação do mundo, em poucos minutos.

A impactante notícia enviada na frente de todos os outros meios de comunicação pela manhã somente foi confirmada oficialmente, e para meu sossego, ao fim da tarde pelo Alto Comando, no escritório que mantinha no Hotel Sheraton em Buenos Aires.

Dois Super Etendards que decolaram da base de Rio Grande, a uns 800 quilômetros das Malvinas, atacaram com mísseis Exocet o destróier britânico HMS Sheffield. Os impactos provocaram um incêndio devastador. O destróier afundou seis dias depois.

Nesse Hotel Sheraton, boa parte dos correspondentes internacionais estavam hospedados. A cama do meu quarto no Sheraton era boa, porém foi uma série de muitas noites mal dormidas. Eram longas jornadas a pura adrenalina, num jogo de embustes dos dois lados.

Grã Bretanha tinha estabelecido uma "zona de exclusão" no Atlântico Sul que significava que não permitiriam aeronaves ou embarcações argentinas nessa área. Fora da área de exclusão, estava liberada a navegação e voos. Assim essa guerra tinha precisos limites geográficos pré-estabelecidos.

A informação vinda dos satélites americanos alertou ao Alto Comando Britânico da localização do cruzador General Belgrano, que estava fora da zona de exclusão. Um submarino nuclear britânico afundou a nave com torpedos. Ficava mais do que claro que Grã Bretanha estava disposta a tudo para vencer a guerra.

O afundamento do Belgrano provocou, além das perdas humanas, um grande dano colateral. Desmoralizou completamente o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), assinado no Rio de Janeiro em 1947, que serviria como mecanismo de "auxílio mútuo em caso de agressão extracontinental".

Na cobertura jornalística, a adrenalina mascarava o cansaço, o café driblava o esgotamento. Uma noite consegui ir jantar na casa da minha mãe no bairro de Belgrano, a quem não visitava fazia um ano. Nem sequer falei com ela mais de um minuto ao telefone desde minha chegada a Buenos Aires, por estar absorvido pela missão. Que alegre e amorosa noite!

Ao fim do jantar, senti o meu coração disparar. Deixei a sobremesa de lado. Expliquei a minha mãe que precisava voltar logo ao hotel para descansar um pouco. Dei um longo beijo na minha velha. Pensei que estava na beira de um infarto.

No taxi fui diretamente ao hospital mais próximo. Eletrocardiograma quase normal, porém os batimentos cardíacos batiam recordes.

É estresse, afirmou o médico.
Com certeza. Todo o estresse imaginável porque estou cobrindo a guerra como jornalista de uma agência noticiosa, respondi. Senti que o atarefado médico até teve pena de mim.

Aplicou um sonífero no meu braço, na maca da enfermaria de urgência do hospital. Dormi profundamente. Na manhã seguinte, com a mesma roupa amassada da véspera e com cara de meio defunto do hospital voltei diretamente ao escritório. Ninguém reparou no meu estado lamentável. A guerra continuava.

Uma guerra que deixava ensinamentos militares e políticos.

Que os submarinos nucleares são um excelente elemento de combate não há dúvida, Não cumprem, porém, satisfatoriamente a função de presença naval em tempos de paz.

Que quando a sorte do inimigo está por um fio, o mais fácil é cortar esse fio.

Que a logística ganha ou perde a guerra.

Que os comandos militares devem ter um diálogo fluído com as autoridades políticas. Devem ser ouvidos, porém, sem serem seguidos, necessariamente, seus conselhos. 

Que nesta era tecnológica, a perícia e a coragem não são suficientes.

A síntese foi do almirante americano Harry Train, que comandou a Frota do Atlântico dos Estados Unidos durante o conflito.

Quando os britânicos fizeram uma cabeça de ponte nas ilhas eu sabia que era questão de dias para o fim. O capitão Massera tinha me contado o final do filme.

Nessa guerra, as bombas, mísseis, torpedos, foguetes, granadas, balas e minas mataram 649 soldados argentinos e 255 britânicos. Foram milhares de feridos. A insanidade da guerra deixou seques psicológicas que levaram ao suicídio 352 soldados argentinos e 264 britânicos.

Não assisti os capítulos finais da guerra (travada de 2 de abril a 14 de junho). As mal preparadas tropas terrestres argentinas se renderam as forças britânicas, muito superiores em armamento e tecnologia. Grã Bretanha recuperou as ilhas. 

Antes desse final, eu fui enviado de urgência a Copa Mundial de futebol na Espanha. O editor chefe explicou que devia viajar imediatamente porque a FIFA não aceitou a minha substituição como jornalista credenciado, por razões de segurança.
Dois dias depois, em Sevilha, tive de correr para informar da distensão do artilheiro Careca num treino da seleção brasileira, porque era noticia de primeira página. "Que mundo louco!" pensei. Estava certo.

Imagem: Afundamento do destróier Coventry, Poder Naval



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