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Hechos y delirios
Capitulo 9 - Gazeta Mercantil e Cambio 16

05/10/2022 00:00




­Capitulo 9 - Gazeta Mercantil e Câmbio 16     (1976)

Um jornal com independência e tecnologia, inovou e mudou o panorama da informação econômica e política. Uma revista "subversiva".

Retornei dos Estados Unidos ao Brasil em 1976. Tinha plena consciência de ter participado da cobertura de fatos históricos mundiais. Estava no lugar e no tempo certo. Sorte. Também sabia que demoraria a ocasião para ter tanta exposição jornalística como tive.

José Antônio Severo, diretor da Gazeta Mercantil no Rio de Janeiro, me ofereceu o cargo de gerente administrativo. O crescimento da sucursal do Rio era vital para o jornal até esses dias apenas o segundo jornal econômico de São Paulo. "Sei pouco ou nada de administração", respondi. "Eu quero uma boa cabeça de jornalista para gastar bem a grana do jornal", disse. Aceitei.

Cada centavo era investido em produção e não em burocracia. Contratamos uma redação de luxo, dando por fora algumas regalias fruto das permutas publicitárias, viagens, carros, passes para restaurantes e bares, para superar os tetos salariais e ganhar, dessa forma, os melhores.

Contratamos águias para captar publicidade, sob a orientação de Hélcio Ferreira e foi criado um serviço de distribuição a cargo de Luis Carlos Mendes, com Gilberto Pauletti chefiando a redação local.
Um grande desafio foi apoiar o projeto de transmissão via satélite do jornal para sua impressão simultânea nas principais capitais do Brasil. Era como enviar astronautas a Vênus. A cúpula do jornal em São Paulo era visionária.

Para essa realização chegaram dois engenheiros americanos que penavam para transitar pela estatal Embratel, lotada de coronéis, e por um Rio de Janeiro belo, quente e caótico.
Com razoável poder sobre o caixa eu buscava todas as formas para que os gringos não sentissem saudades dos Estados Unidos e abandonassem o projeto destinado a transformar a Gazeta Mercantil num veiculo de ponta no âmbito mundial.

Festas, passeios e outros atraentes recursos heterodoxos foram usados para que os visitantes ficassem animados e alegres, desfrutassem de experiências prazerosas e, assim, seguissem lutando contra as dificuldades técnicas e a burocracia nos trópicos.

Americanos tinham que entrar nas entranhas do sistema da Embratel para possibilitar que as "linhas ficassem limpas". Os coronéis arreganha-dentes aceitaram. Eles limparam. Com a tecnologia em prática foi iniciada a transmissão das paginas do jornal do Rio para as oficinas em off set das principais cidades brasileiras. Assim, impressa nas capitais do país, os executivos podiam ler a Gazeta Mercantil nas primeiras horas da manhã, todos os dias.

Até esse tempo os jornais eram distribuídos em caminhão, ônibus, trem, barcos, lanchas, motos. Chuvas, deslizamentos, acidentes, nevoeiros e outros faziam com que muitos leitores perdessem a edição.
Devido aos obstáculos de um país gigantesco, o Brasil não tinha um jornal realmente nacional, que chegasse a todos, logo cedo. A Gazeta ocupou esse lugar.

Até a impressão simultânea, a Gazeta Mercantil era apenas o segundo jornal econômico de São Paulo. O êxito foi gigantesco e passou a ser o primeiro jornal econômico do Brasil e quarto jornal econômico do mundo! Gazeta Mercantil foi o segundo jornal a colocar em prática a impressão simultânea, o primeiro de Wall Street Journal.

A redação independente contava com total credibilidade. Os melhores em cada setor, sob a batuta editorial de Roberto Müller. Nada era publicado sem múltiplas checagens. O sucesso foi completo.
Grandes agências e anunciantes procuravam o jornal para se anunciar, pagando tarifa plena. As vendas estouraram. Vitória Total! Gigantesco mérito para a família Levy, os diretores Muller e Cláudio Lachini e muitos outros profissionais excepcionais, entre eles Severo.

Nesse momento Severo era um dos diretores de uma empresa influente e gigante, que publicava além do jornal, revistas setoriais, cadernos especiais, relatórios de segmentos econômicos. Incontáveis reuniões, muitos funcionários. Ate que "perdeu a graça porque não tenho tempo de escrever", me disse ele ao renunciar para ser simples cronista de uma revista de pouco calibre. Sem esse companheiro genial, para mim também tudo perdia a graça. Logo depois também sai.
"Sou latinoamericano e nunca me engano"

Como o mundo da muitas voltas passaram 15 anos e a Gazeta Mercantil voltou a fazer historia no jornalismo mundial. Severo tinha retornado como diretor à empresa, após inovar o Jornal Nacional da TV Globo e participar de outras grandes aventuras profissionais.

Ele me convocou no Rio de Janeiro, num hotel em Copacabana. Também a Valério Fabris. A missão: preparar em menos de dezesseis horas um projeto de um semanário vinculado à Gazeta Mercantil para circular na América Latina, em português e espanhol. "Você sempre sonhou com algo parecido, então faz", foi à arenga do Severo, este amigo que para mim um dos maiores historiadores romancistas sul-americanos.

Com o apoio de incontáveis cafés, alguns uísques e muitas risadas, completamos a espinha dorsal do projeto. No dia seguinte o apresentamos ao dono da Gazeta, Luiz Fernando Levy, que o aprovou com entusiasmo. Assim nasceu a Gazeta Mercantil Latino-americana.

O primeiro-ministro da Espanha, Felipe González foi quem tinha colocado a ideia para Levy, dizendo que o Mercosul precisava de um veículo. "Para integrar é necessária uma boa comunicação", foram as palavras do importante político socialista espanhol. Em Buenos Aires o mesmo trio completou o projeto. Foi apresentado artisticamente à nata empresarial portenha, com vários pesos pesados do Brasil, no histórico Hotel Alvear.

O Mercosul avançava sem sabotagens e o veículo foi útil para destravar pontos da agenda e deixar à mostra interesses menores perante um projeto que, além de melhorar o poder negociador extra-zona, era uma garantia de paz na região.

Por exemplo, alguns policiais rodoviários de integrantes do Mercosul paravam caminhões com placas de outros países membros e com legalismos ou ameaças tiravam dinheiro dos caminhoneiros. O semanário publicou depoimentos de vários trabalhadores do volante e essa prática criminosa acabou rapidamente porque a noticia apareceu num veículo lido por dirigentes e governantes em todos os países do grupo.

A melhor manchete do semanário foi dada pelo saudoso Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Luiz Felipe Lampreia. Tinha sido uma tensa reunião do Mercosul para definir a relação do grupo com os Estados Unidos. O semanário estava fechado, salvo a manchete de primeira página que aguardava o termino da reunião em Montevidéu. No meio da entrevista de imprensa ao final do encontro pedi a Lampreia definisse, em quatro palavras o resultado. Vários colegas me olharam com reprovação pela aparente petulância de delimitar a resposta.

Lampreia foi brilhante: "Nem Vencedores nem Vencidos" respondeu e essa foi a manchete do semanário. Quando soube do falecimento desse brilhante diplomata e amigo, confesso que chorei. America Latina perdia um líder do diálogo e eu um mestre.

O tabloide circulou em espanhol em 12 países latino-americanos, na Espanha e Miami, em português no Brasil e Portugal, encartado em grandes diários. O semanário aproximou muitas instituições regionais e facilitou o intercâmbio de especialistas. A experiência de ter sido o editor sênior desse veículo me reforçou a convicção que efetivamente tudo andaria melhor de andar juntos.

A crise financeira da empresa mãe acabou arrastando a Gazeta Mercantil Latino-americana. Uma pena. Mas os jornais, as instituições, as pessoas nascem e morrem. O importante é o que acontece entre o nascimento e o fim. Foi um grande momento para a política sul-americana, para a economia regional e para o jornalismo. Eu tive a fortuna de estar no olho do furacão da integração. Valeu cada minuto!

Revista "subversiva" na Europa

Volto a abordar as publicações que fizeram história e contribuíram para frear o totalitarismo, com inteligência e coragem. Câmbio16, que também editava o jornal Diário16, me contratou como correspondente no Brasil, em 1976.

A revista foi fundada em 1971, mas o regime de Franco tinha proibido o nome Câmbio, inicialmente registrado para a revista. Era necessário especificar que tipo de "Câmbio". Os dezesseis jornalistas fundadores e investidores da revista definiram: "Câmbio 16" e foi adiante. Intelectuais europeus e alguns sul-americanos contribuíam com artigos de peso para fortalecer essa frente contra o regime totalitário, já desgastado.

No conteúdo do semanário, cujo primeiro diretor foi Juan Tomás de Salas, predominava a informação relacionada com a efervescência política daqueles momentos históricos. Foi alvo de censuras, sequestros e multas. Mas a valentia editorial teve retorno e em 1976 chegou a vender quase 350.000 exemplares.

Em junho de 1977 foram realizadas as primeiras eleições democráticas na Espanha depois de 42 anos. Uma semana depois da derrota dos totalitários nas urnas foi colocada uma bomba no prédio de Diario16. O jornal respondeu a essa ação terrorista com a manchete "Como aprendi a amar a bomba".

Eu apenas enviava breves matérias factuais para o semanário. Em 1977, ao cumprir um ano a ditadura militar argentina, a revista européia me pediu para fazer uma lista objetiva sobre os mortos e presos, ou desaparecidos, nesse ano.

A ordem do editor espanhol era citar números de umas vinte fontes institucionais como a Junta Militar Argentina, organizações de direitos humanos, igrejas, Cruz Vermelha. Nada de adjetivos. Apenas os números das instituições. Mais nada. Parecia algo rotineiro. Não foi.

A minha matéria factual, com os nomes das diferentes instituições e seus númerosm- foi umas duas páginas centrais da revista. Na outra página central, uma análise sobre o impacto da censura, o medo da repressão externa e interna na alma de um povo, assinada pelo consagrado escritor Júlio Cortázar. Quase desmaiei de emoção quando vi a revista.

Era uma glória estar perto, mesmo que com números, da assinatura de Cortázar. Essa glória teve seu preço. O general Albano Harguindeguy, então Ministro do Interior da Argentina, dedicou uma entrevista de imprensa para se referir "à campanha orquestrada por dois subversivos apátridas", os autores da matéria. Familiares e amigos me telefonaram pedindo para não viajar à Argentina, porque certamente passaria a ser mais um número da macabra estatística.

Depois das palavras do general Harguindeguy, fiquei dois anos sem entrar no território argentino. Tive receio que pudessem descarregar algo do ódio na minha mãe ou minha irmã. Nada aconteceu. Em 1979, um oficial da marinha que conhecia o assunto me retirou da lista negra do regime militar argentino.

Em maio de 1980, por ocasião da visita do presidente general João Figueiredo na comitiva de imprensa - com credencial verde-amarela emitida pelo Palácio Planalto - voltei a pisar o asfalto de Buenos Aires e até entrei na Casa Rosada.

Na recepção realizada na embaixada do Brasil, com a cúpula da comitiva e do regime militar argentino fiquei a dois metros de general Harguindeguy. Olhei rapidamente meu quase verdugo. Não senti raiva. Depois peguei uma bebida longe dele. A vida seguiu.

Cortázar nunca voltou a sua cidade. Ficou em Paris até sua morte.

Imagem: Periódicos - PNGWing



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