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Hechos y delirios
Capitulo 4 - Adios Nonino

05/10/2022 00:00




Capitulo 4 - Adios Nonino  (1962)

Estive próximo de Piazzolla. Eu era o filho do seu amigo. Sendo assim, testemunhei belos e marcantes momentos ao seu lado, sob os holofotes e longe deles.

Aviso importante: este texto é tendencioso e parcial. É sobre Astor Piazzolla, esse gênio da música com quem tive o privilégio de conviver durante anos. Confesso que sou louco pela obra desse músico que foi do jazz ao tango, do clássico às mais audazes inovações e a tantos fez chorar, viajar, amar, sonhar.

Astor Piazzolla nasceu em Mar del Plata, Argentina, em 1921, neto de italianos pelos quatro lados. Viveu dos quatro aos quinze anos no East Village, em Nova York, onde começou a tocar bandoneón com oito anos. Aos doze, começou aulas de piano com o pianista húngaro Bela Wilde, discípulo de Sergei Rachmaninoff.

Com dezoito anos já era um músico destacado nos palcos de Buenos Aires. Foi o segundo bandoneón e depois arranjador na orquestra de Aníbal Troilo, um dos nomes mais importantes do tango. Troilo se apresentava em salões elegantes e clubes. Também em cabarés e outros locais possivelmente não tão bem falados.

Num dos salões chiques ou em um dos outros locais,- tenho esse ponto impreciso, Piazzolla ficou amigo de outro jovem amante do tango e de seus personagens. Esse companheiro das noitadas também possuía enorme talento, porém, apenas para escrever. Justo era seu nome e ele começava a se destacar como jornalista. Ele e Piazzolla ficaram amigos. 

Nunca me importou que Piazzola me tratasse somente como o filho de Justo. Esse mesmo trato se manteve de minha adolescência até a idade adulta. O que me importava era poder estar perto dele ou acompanhar a sua arte. Sempre foram momentos memoráveis.

Em 1969, o grande ginásio coberto Luna Park, um dos principais cenários do boxe dessa época, recebeu o Festival del Tango. Como jovem repórter da UPI , agência de notícias que alimentava uns quinhentos jornais, rádios e emissoras de televisão apenas na Argentina , fui enviado para cobrir o evento. "Vai ver Piazzolla, o amigo do teu pai", me disse Bernardo Rabinovitz, ou simplesmente Rabino, chefe de redação.

No festival, as orquestras foram passando sem destaque. Até que Piazzolla subiu ao palco com uma grande orquestra com vários violinos e uma mulher como cantante, Amelita Baltar. O silêncio pairou entre as cinco mil pessoas que estavam no então maior estádio sul-americano de boxe. 

No microfone a vibrante voz feminina rompeu o silencio, entoando os versos do poeta Horácio Ferrer, acariciada pelos suaves violinos. Quando avançou: "Quereme asi piantao, piantao, piantao / subite a esa ternura que tengo para vos" os violinos elevavam o tom acompanhando o crescendo do bandoneón do maestro. 

O impacto chegou como um gancho na mandíbula. Com os acordes finais de Balada Para un Loco, o Luna Park explodiu. Após alguns instantes, uns fanáticos resolveram reagir. Surgiram ruidosas vaias e gritos em coro "Eso no es tango...eso no es tango". Eu, na época sabia menos do que hoje sei, mas nunca tive dúvida de que aquilo era tango. 

Os integrantes do júri, aturdidos,  tiveram que pedir que Piazzolla executasse novamente Balada Para um Loco para que pudessem ouvir sem o barulho dos tumultos. E assim foi feito. E novamente vivas, palmas, vaias e gritos atrapalharam a apresentação. Um jurado chamou a atenção do público e exigiu silêncio para que pudesse ouvir uma terceira execução. Não era uma noite de boxe, era de música. 

Não lembro o tango que os jurados declararam como vencedor do Festival. Balada Para un Loco ficou em segundo.

Em 1977, com seu amigo exilado no Brasil, Piazzolla aterrissou no Rio. No mesmo dia, deixou as malas no hotel e foi beber um uísque com meu pai na varanda do nosso apartamento na Avenida Atlântica. Piazzolla e Justo ficaram embrenhados em longas conversas. Em silencioso êxtase, eu acompanhei as espirituosas trocas entre os meus ídolos.

Na mesma temporada, descobri que Piazzolla tinha por hábito dormir pouco, porque dizia sentir que, na sua cabeça, eram marteladas a toda hora ideias para novas músicas. Piazzolla foi o autor de mais de quinhentas composições. Os seus dedos se mexiam constantemente, talvez executando um bandoneón imaginário, ou regendo uma orquestra de sonhos. Dificilmente ele lembrava em qual cidade, ou mesmo país, seria seu próximo espetáculo. Importava-lhe exclusivamente a qualidade do repertório e os maestros que o acompanhariam.

Outra paixão de Piazzolla foi Amelita Baltar. Até conhecê-lo, ela cantava apenas canções folclóricas, a música do interior argentino. Piazzolla a convidou para participar da opera-tanguera Maria de Buenos Aires. E ela foi estupenda no palco. Depois, Piazzolla a convidou para dividir sua vida com ele. Ela aceitou. Acredito que Piazzolla não conseguia separar vida e música. A música era sua vida.

Um dia, recebemos a notícia de que Piazzolla tinha separado de Amelita. Piazzolla voltou dias depois ao Rio para um show em um teatro da Zona Sul. Na mesa do restaurante, depois do show, meu pai perguntou se ele tinha ouvido os pedidos do público, não atendidos, para tocar Balada Para un Loco. "Essas obras foram lixo", respondeu. Tudo em Piazzolla era intenso, músicas, relacionamentos, frases.

Anos mais tarde, Piazzolla e Amelita voltaram a ser amigos. As composições que, num momento de raiva, foram renegadas passaram a ser integradas ao seu repertório e na lista das grandes composições da música. Era a loucura da genialidade que o castigava a toda hora. Para relaxar entre tantas viagens e apresentações, Piazzolla pescava tubarões na costa de Punta del Este.

Em outra passagem pelo Rio de Janeiro, Piazzolla chegou com o seu quinteto. Destacava-se o violinista Antonio Agri, premiado intérprete de música clássica. O público delirou. Meses depois voltou sem o violino e com um sintetizador. "O sintetizador é a força do presente" explicou ao público, que sentia a falta do violino, mas que também ficou extasiado pela apresentação.

No ano seguinte, Piazzolla retornou com Agri. "O violino é o instrumento que conecta diretamente com a alma e transcende o tempo", explicou Piazzolla no meio da apresentação. Não era incoerência. Os gênios criam outra forma de coerência.

Piazzolla muito admirava João Gilberto e Tom Jobim. Ouvi dele que, entre músicos, compositores e poetas brasileiros curtia Caetano Veloso, Chico Buarque, Mlton Nascimento, Egberto Gismonti, Geraldo Carneiro e Artur Moreira Lima. Nessa visita ao Rio, fui o motorista de um Dodge Dart preto, encarregado de levar Piazzolla à casa de um dos altos dirigentes da Rede Globo em São Conrado. 

Após pouquíssimos minutos de conversa, Piazzolla viu um teclado de última geração na sala. Sem pedir permissão, sentou-se ao teclado e, durante uma hora, executou clássicos do tango e do jazz. Ficamos paralisados de emoção. Aí ele se levantou e pediu para voltar ao seu hotel porque precisava "revisar alguns arranjos".

No final dos anos oitenta Justo pôde retornar a Buenos Aires. Pouco tempo depois, numa fria manhã de julho, ele sofreu um infarto fulminante. Seu amigo Piazzolla estava longe, em Paris.

Em 1990, poucos meses depois da morte de Justo, Piazzolla voltou ao Brasil. Em Brasília, onde eu então vivia, ele me fez chegar um recado para que passasse no seu hotel para pegar dois ingressos para o espetáculo daquela noite, no Teatro Nacional. Ao me entregar as entradas para a primeira fila, ele disse: "Na primeira parte, vou tocar para Justo" Foram as únicas palavras sobre a partida definitiva do seu amigo. 
Fui ao Teatro Nacional. 

Diante do auditório lotado, Piazzolla abriu o concerto: Quejas de Bandoneón, Milonga del Angel, Primavera Porteña. Até que chegou a vez de Adios Nonino. Piazzolla apertou mais o bandoneón com suas mãos fortes ao tocar para o seu amigo de meio século. 

Eu também sentia no peito cada aperto dos seus dedos longos e deformados. Pulsava a dor de todos os órfãos, o vazio da ausência, a perda sem consolo. Levado por essa música brotou em mim uma calma celestial, a acariciante nostalgia de momentos de puro amor. 

O final de Adios Nonino é sutil. Essa noite, Piazzolla fez o bandoneón soltar até o último sopro de ar, lenta e docemente. Parecia sussurrar: "Meu amigo, descansa em paz".

Imagem: Astor Piazzolla, La revista del Siglo ­


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