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GUILLERMO PIERNES
Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 2 - Sensibilidade

05/10/2022 00:00




Capitulo 2 - Sensibilidade  (1955)

Do terraço da minha casa vi as colunas de fumaça preta que subiam ao céu. Foi o meu primeiro grande encontro com a insensatez da violência 

Voltemos à infância portenha. Minha família estava no último degrau da classe média. Meu pai, Justo, era um jovem jornalista reconhecido, salvo na parte financeira como acontecia com grande parte dos profissionais da imprensa. Minha mãe era uma dona de casa no bairro de Chacarita, a 15 minutos de metrô do Obelisco. 

O meu velho era brilhante, não somente como jornalista. Como pai, sem levantar a voz nem a mão, mostrava como todo feito errado voltava. A sua boa biblioteca e sua grande vitrola me faziam voar longe do Parque Los Andes, onde aprendi a andar de bicicleta e dar os primeiros chutes na bola. 

A minha mãe foi minha poderosa luz de otimismo para encarar a vida. "Vai passar" eram suas palavras cada vez que, quando pequeno, levava alguma pancada ou caía enfermo. Se a febre aparecia dizia "vai passar". Depois de preparar algum remédio caseiro tomava a minha mão o tempo que fosse necessário até a febre se render ao seu amor incondicional. Pura dedicação, cuidado com plantas e animais e o seu afortunado filho.

Meu bairro era de paz, sem notícias de roubos ou furtos, muito menos assassinatos. A primeira intervenção policial que assisti foi por volta dos meus 10 anos. Com dois amigos saí a fumar pela primeira vez pela rua. O policial do bairro nos parou e prometeu que na próxima vez que nos visse fumando iria de casa em casa para contar aos nossos pais. Eram outros modos de encarar a vida.

O peronismo estava no seu auge. Pela rádio, o slogan era repetido: "Los únicos privilegiados son los niños". Em parte, o slogan era verdade porque tínhamos boas escolas do Estado, excelentes colégios de segundo grau e universidades de ponta. As escolas sem mordomias. A merenda era mate cozido e pão com manteiga, preparada pelos próprios professores. 

Numa manhã do dia 16 de junho de 1955, os professores da escola nos mandaram voltar logo para nossas casas. Aviões da Marinha estavam bombardeando a Casa Rosada e a Plaza de Mayo para derrubar Perón. Centenas de civis morreram. Do terraço da minha casa vi as colunas de fumaça preta que subiam no céu. Foi o meu primeiro grande encontro com a insensatez da violência. 

Perón renunciou três meses depois do bombardeio, ao chegar a conclusão que uma guerra civil seria inevitável de continuar na presidência, com a radicalização dos setores mais conversadores e ultracatólicos das forças armadas, por um lado, e um setor de Exército e os sindicatos pelo outro. Perón deixou o país numa nave paraguaia, rumo a Assunção. 

Mas na minha escola pouca coisa mudou, salvo o retorno da matéria Religião. Entre os colegas havia alguns filhos de judeus e árabes que me provocavam grande inveja, eram liberados de assistir essa aula e podiam sair da sala para ir jogar bola no pátio. 

Nessa época s escolas eram separadas, umas para meninos e outras para meninas. Na escola só para varões, quando o assunto era sensibilidade as coisas, às vezes, ficavam difíceis. 

Na sociedade machista dominante do meu tempo de pré-adolescente, era complicado para um rapaz demonstrar sua sensibilidade. 

Aos meus 12 anos era leitor infatigável. Mergulhava nos livros dessa época para minha idade como Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne, Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, Caninos Brancos, de Jack London, Coração, de Edmundo Damicis.

Na biblioteca do meu pai devorava romances de Émile Zola como A Taverna e Naná sem entender muito, porém fascinado pelas descrições minuciosas de ambientes cruéis, adultos, inquietantes. Ria e desfrutava ao extremo obras como A Tournée de Deus e Espera-me na Sibéria, Vida Minha, do mestre do humorismo moderno o espanhol Enrique Jardiel Poncela.

No último ano do colégio primário em Buenos Aires, o inesquecível professor José Maria Guido me designou leitor oficial dos textos na última hora das aulas diárias. Eu fiquei empolgado. Voava a outras dimensões, lendo apaixonantes capítulos de grandes autores e poemas do primeiro asiático a receber o Prêmio Nobel de Literatura, Rabindranath Tagore:

"Deixa que o sol da tarde
entre na folhagem
e se detenha um momento
brilhando no negro rio
do teu cabelo..."

A maioria dos meus colegas nem ligava. Pior, alguns até riam ou zombavam de minhas escolhas. Somente pelo fato de ler textos sobre a necessidade de fraternidade e a paz entre os homens, amor a Natureza ou poemas sobre amores sublimados.

Decidi sair em drástica defesa das minhas preferências literárias. Era também uma guerra para limpar a honra dos meus autores, maculada pelas caretas e sorrisos sarcásticos.

No meu bairro tinha um ex-boxeador profissional que me conhecia desde bebê. Pedi a sua ajuda para aprender a lutar. Depois de mostrar o básico: como montar a guarda, andar na ponta dos pés e soltar os golpes, chegou à conclusão de que eu tinha um futuro limitado como boxeador. Salvo meu gancho de direita que era realmente rápido e contundente, ao transferir naturalmente o peso do corpo ao punho.

Treinei e treinei esse golpe para ser aplicado na orelha do adversário, o que pode levar rapidamente à perda do equilíbrio, vista nublada e até um nocaute. A regra: uma base firme nas pernas semiflexionadas, fita com a mão esquerda, giro do tronco fulminante e o punho firme evitando antecipar o alvo com a vista.
Pronto. Considerei-me graduado como guerreiro da liberdade, para ser leitor sensível e macho reconhecido. O plano estava certo. A lógica desses meus 12 anos de idade desconsiderava a dúvida.

O plano de defesa da literatura e da honra foi colocado em prática quando anunciei aos meus companheiros, no recreio, que quem zombasse durante a hora de leitura ia ter de me encontrar na saída da escola. E assim foi.

O primeiro a ser enquadrado entrou alegremente no círculo formado na calçada por alunos sedentos de brigas. Para ele era uma briguinha divertida. Para mim era a batalha pela minha honra, meus ídolos.
Após alguns empurrões e socos ao ar eu tive a oportunidade de fintar com a esquerda para que o infiel da literatura mudasse a guarda. Lancei o gancho de direita na orelha. O menino ficou tonto e aí recebeu outro e outro e outro e outro... Eu não queria parar. Alguém deteve a luta ao ver que o menino ia ser seriamente machucado.

Muitos recapacitaram sobre a literatura e o brutal vencedor da briga. Minhas leituras passaram a ter atenção e silêncio maiores.

O drástico plano de defesa teve de continuar porque a memória do povo era curta, e toda semana devia encaminhar infratores da regra do respeito. Felizmente os grandalhões da sala nem ligavam para a hora de leitura. Para essa turma eu também tinha considerado abrir exceções na aplicação da lei de defesa da literatura e outros.

Na maioria das vezes enfrentei meninos do meu tamanho, alguns maiores e uns poucos menores, aos quais também era aplicado o gancho na orelha impiedosamente. Apesar da boa técnica e velocidade, várias vezes voltei para casa com hematomas, olhos ou lábios machucados. A explicação para minha mãe, quedas ou choques durante a aula de educação física.

Um dia o querido mestre Guido soube das minhas convocatórias aos sem respeito à literatura. Num recreio me levou à sala de aula vazia e fechou a porta. "...Você ama menos os livros do que eu...seu valentão, quer brigar comigo? ", indagou. Estava falando sério. Respondi que não. Pedi desculpas.

Nunca mais briguei fisicamente para defender novelas, poemas, crônicas, contos, pinturas ou músicas. Quem quiser defender algum tipo de discriminação que o faça. Se possível tentarei dar informações para que essa pessoa abandone esse tipo de atitude. Se os argumentos fracassarem, devo confessar que desejo que apareça um ser com sede de justiça e um bom gancho de direita.
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Imagem: Mujer entre las flores, Boris Prokasov 


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