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GUILLERMO PIERNES
Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 1 - Feitiço baiano

05/10/2022 00:00




­Capítulo 1 - Feitiço baiano   (1945)

De mim não tirarão essa Bahia que marcou minha história, perfumou minha pele, acelerou meu coração, fez dançar a minha alma.

A magia da vida deslumbra desde os primeiros minutos, e quando estamos próximos do fim essa magia nos faz entender alguns porquês dos nossos rumos.

Nasci em Buenos Aires, logo depois do fim da II Guerra Mundial, em meio a uma sociedade de classe média, sem miseráveis nem famintos, porém com muitos pobres para o país que era a quinta economia do mundo. Volto à magia do nascimento. Por quê?

Yo soy um portenho baiano.

Sim, Yo soy um portenho mais baiano que a maioria. Yo soy o mais baiano dos portenhos, mais que os muitos argentinos e de outras partes do mundo, que amam a Bahia. Fui, sou e serei agradecido à "boa terra".

Eu nasci, além do reconhecido e apreciado labor dos meus amados pais, em grande parte pelos esforços de um baiano. A narrativa será cronológica.

Na madrugada de um escorpiano dia, quando a humanidade ainda celebrava a paz com o fim da II Guerra Mundial, a senhora Délia foi levada às pressas a um hospital público, no Paternal, tradicional bairro de Buenos Aires. Era para ter seu primeiro filho. Nesse hospital trabalhavam muitos médicos europeus, que tinham chegado antes ou ao fim da II Guerra Mundial.

Argentina então era o país em melhor condição econômica, educacional e social da América Latina e a sua capital era um centro científico dos mais respeitados do mundo.

Em Buenos Aires estudavam milhares de jovens latino-americanos. Muitos eram estudantes de medicina e alguns em especialização. Vários deles estavam nesse hospital próximo à faculdade de Agronomia. Entre eles um recém-formado nascido no interior da Bahia.

O parto da jovem e linda senhora Délia estava realmente complicado. Passava da hora de dar a luz e o bebê estava virado e bastante enrolado no cordão umbilical. Frente à cama da paciente foi formada uma junta médica para decidir, qual a intervenção mais adequada. Três recém-formados acompanhavam atentos a discussão sobre esse parto tão difícil.

Nesse ano de 1945 não existia o scanner, ressonância magnética e ninguém sabia antecipadamente o sexo de quem estava na barriga. O experiente médico alemão que chefiava o grupo, após ouvir a todos, sentenciou: "Devido a que o tempo já esgotou, vamos proceder ao que é necessário para salvar a vida da mãe".

Quem estava no interior da barriga deve ter pensado "Alea Jacta Est" - do latim erudito - ou "estou fudido" - expressão vulgar e chula. Pura e completa especulação, mas o fato é que a senhora Délia começou a chorar ao saber que seu aguardado primogênito tinha poucas ou nenhuma chance.

Aí apareceu um baianinho moreno e irreverente, que disse: "Eu sempre ajudei meu pai com manobras com animais em trabalho de parto. Posso tentar?" O alemão respondeu: "Você tem cinco minutos; depois disso vamos salvar a vida da mãe". O baianinho subiu na barriga, forçou aqui e lá, apertou, esticou, bateu, acariciou, beliscou, girou, manobrou... até o bebê sair para a vida.

Eu nasci! Saravá!

Houve o risco que o acidentado nascimento afetasse o meu cérebro por uma possível falta de oxigênio durante o processo. Aparentemente não houve qualquer dano. Alguns da oposição, maldosamente, comentam que sou doido de nascimento. Pura intriga! Chega!

Minha mãe me relatou centenas de vezes o episódio do meu nascimento. Histórico, pelo menos para mim. Tanto é que eu celebro a data de seis de novembro com os meus seres queridos, alegria, bolos, velinhas e algum espumante.

A minha relação com a Bahia foi intensa desde a adolescência. Ficava fascinado pelos livros de Jorge Amado que me faziam voar com histórias baianas, impregnadas de misticismo, humor, sensualidade, cores e música.

Quando ingressei na agência Reuters, o Rio de Janeiro foi o meu primeiro destino como correspondente internacional da maior empresa de comunicação do mundo. Uma das minhas primeiras missões em território brasileiro foi a Salvador, em 1971 para escrever sobre sincretismo religioso, origem da tanta riqueza musical, culinária e danças herdadas da África, dos ancestrais indígenas e dos portugueses.

Como explicar para leitores de fora do Brasil que a capital baiana tem uma igreja católica para cada dia do ano, com um gigantesco número de descendentes de africanos que mantêm fidelidade a religiões dos antepassados? Acabei redigindo uma série de vibrantes e coloridas reportagens sobre a vida em Salvador. Agradeci à Iemanjá ao mergulhar no mar morno. Em Roma, como os romanos. Na Bahia, como os baianos. 
Tempos depois mergulhei em outros mares, sem deixar de reverenciar a Iemanjá nesses momentos.

Em 1980, já como correspondente da United Press Internacional (UPI), integrei a equipe designada para cobrir a visita ao Brasil do Papa João Paulo II. Quando o pontífice dirigiu-se a Salvador, lá fui eu. O Papa falou com carinho do ecletismo na religiosidade baiana, na presença de pais de santos e pajés. Para honrar a verdade, confesso que apesar de assistir a tanta religiosidade, poucas vezes fui exemplo da santidade nas minhas visitas à Bahia. Fui castigado. A baiana punição foi numa dessas visitas a Salvador.

Como eu tinha estado várias vezes no México, país que reina de forma absoluta em matéria de comidas apimentadas, pedi a uma baiana que o acarajé que me servia no Tabuleiro da Baiana fosse com muita pimenta. A baiana colocou mais uma colher de molho de pimenta. "Mais", disse eu, com o tom de voz mais másculo possível. Com calma, a baiana colocou uma montanha de pimenta que quase escondeu o acarajé. Houve um silêncio inesperado na pequena fila formada atrás de mim. Percebi que tinha desafiado a baiana e a resposta chegava quente...

A origem do germânico nome Guillermo (Wilheim) significa "guerreiro das causas justas". Devia honrar o meu nome. Assim, não recuei. Com coragem, quase suicida. mordi o acarajé camuflado com pimenta, acompanhado pelo olhar da baiana e dos fregueses. As lágrimas brotaram.

Após inclinar minha cabeça respeitosamente aos presentes e a baiana, na muda despedida do local, caminhei lentamente e com postura galharda até um quiosque próximo. Pedi leite, água, cerveja, refrigerantes sem que o fogo apagasse na minha boca por um bom tempo. Minha orientação: nunca desafie uma baiana.

E já que estamos no tema "baiana", vivi uma paixão linda, inesquecível, com uma médica baiana. Uma baiana de macia pele branca e vivazes olhos azuis. Aparentemente fora do perfil estereotipado da baiana. Poderia até ser fisicamente, mas encarnava o espírito da baiana dos sonhos meus e de muitos. Ela era a alegria, o carinho, o fino humor, a sensualidade, a generosidade, num atraente corpo de mulher. È nasceu num 2 de fevereiro. Sim o Dia de Iemanjá!.

Quando contei a ela a história do meu nascimento, foi atrás de registros de médicos da Bahia que formaram ou fizeram especialização em Buenos Aires, no ano em que nasci. Encontrou o registro. O médico que salvou a minha vida já tinha falecido. Frente ao mar rendi minha homenagem.

A vida moderna, globalizada e tecnológica, de metas materiais e amores virtuais, vai destruindo um pouco de tudo, também na Bahia. Sei porém que a Bahia resistirá mais que outras regiões. De mim não tirarão essa Bahia que marcou minha história, perfumou minha pele, acelerou meu coração, fez dançar minha alma. Deu-me a vida!
Imagem: Iemanjá, Ed Ribeiro



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