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Não faço nada sem ela - José Fonseca Filho

24/10/2022 00:00




­Não faço nada sem ela
Por José Fonseca Filho ** 

Agora eu só ando com ela. Vou para todos os lugares com ela. Seguimos juntos para subir degraus. Continuo com ela para descer. Ligação profunda que tende a se ampliar. Eu e ela, sempre. A partir de agora estaremos sempre juntos. Começou recentemente essa união mas há vários indícios de que o entrosamento continuará por longa temporada.
Quando uma relação está se processando bem é indício de que há uma situação tranquila em franco estado de consolidação. Mas sempre, juntos, os dois. O que significa eu e ela. Companheira firme e na qual posso sempre me equilibrar. Ter uma vivência firme, segura. Agora os dois juntos pelos caminhos da vida.
Não esperava encontrá-la, pelo menos agora. Mas isso aconteceu de repente, e desde então minha vida tomou um rumo mais estável, seguro e de boa convivência. Nos entendemos tranquilamente, sobre qualquer assunto ou caminhada. Sem ela, certamente, eu não poderia fazer mais quase nada. Mas eu jamais desisti e ela me acompanhando, ajudando e empurrando, se necessário. Não faltava mais nada. Eu me sentia plenamente realizado, apesar de, às vezes, parecer meio enfraquecido.
Ela, como disse repetidamente, sempre ao meu lado. Claro que sem ela eu cairia, pois não há mais sustentação em parte da musculatura da minha perna direita, Cansou. Especialmente quando eu jogava futebol. Mas ela chegou a tempo de estagnar parte da musculatura e torná-la mais eficiente.

Quanto eu tentava avançar pela direita, no futebol, sempre levava um pontapé do adversário. Assim não há perna que resista. Já adulto, começando a capengar, não ficaria bem para um atleta. Eu estava realmente precisando dela, a bengala.

Comprei então uma bengala - ela - que passará a me acompanhar pelo resto da vida. Assim estamos, portanto, eu e ela, juntos até o fim.Sem ela ainda mais demorado de chegar. Uma grande companheira. Tem até uma luzinha disfarçada para quando nós sairmos de noite. E se quiserem roubar meu celular ela, minha bengala, dispara um alarme. E se atira, com força, na cabeça do malandro.

Tenho me divertido com certas situações daí decorrentes. Apesar da minha paixão por ela, minha bengalinha querida, a todos os lugares a que vou acabo, na saída, por esquecer-me da formosa bengala. Já houve algumas dezenas de ocorrências. Felizmente, em quase todos esses incidentes consegui recuperá-la.
Certa feita uma senhora gorda sentou em cima da bengala que estava pousada num banco de shopping. Gorda, ela não sentiu o volume. Em 15 minutos levantou-se e ela - a bengala - estalou no chão. Eu peguei porque ela não conseguia se abaixar.

Disse-lhe que era de um primo meu que estava no cafezinho, e iria levar para ele. Desculpe senhor, disse-me. Estava distraída quando sentei em cima. Mas não quebrou. Ela - a bengala - tem sido sempre resistente às surpresas desagradáveis e nas vezes - não poucas - em que a deixo cair no chão.

Lá vou eu com minha bengala. No metrô, todos me dão lugar para sentar. Sem ela, na verdade, eu não fico em pé no trem. Sou grato a todos, eu e ela. Mantenho certas regras da educação. Se uma mulher me cede o espaço para eu passar ou oferece o banco para eu sentar-me, recuso. Ladies first, para mim. Mesmo eu com uma perna chumbada.
Em outro shopping, certa feita, esqueci a bengala no banheiro. Caminhei bastante em outra direção quando dei por conta da falta. Voltei e ela estava amarrada num prego na entrada, com os dizeres: "Encontramos sua bengala. Ver na portaria". Estava lá, bem educada, me esperando. Juro ter ouvido algo como um grunhido de alegria, como fazem os cachorros, das pessoas que assistiram a cena.
Estou ficando acostumado com ela. Ela bengala. Continuo a esquecê-la em lugares diversos. Ainda não houve uma perda definitiva, mesmo assim já comprei uma reserva. Aonde vou é com ela. Mas nunca volto sem ela: procuro até achar. É um instrumento de muitas utilidades.
Ainda não aprendi todas as suas utilidades, só algumas. Por exemplo: afastar cachorros incômodos. Sinalizar para os carros pararem. Dar rasteira num ladrão que estiver fugindo. Bater no chão quando estiver irritado. Procurar em baixo da cama peças caídas ao chão e que para lá rolaram. Basta puxar com a bengala. E ainda é boa para chamar o elevador. Minha bengala aperta o botão antes dos que estão em minha frente. Um serviço prestado por eu e ela em benefício do transporte vertical.
Passei então a colecionar estórias sobre pernas bambas ou braços atrofiados e as dificuldades causadas ao resto do corpo humano. Não deixe seu bom humor se acabar. Não ache que sua vida começa a ser limitada. Você não poderá fazer piruetas com pernas e braços. Pois não faça. Mantenha sempre a força de vontade e a disposição de luta pela qualidade de sua vida. Se cair, levanta. Se levantar, anda. Jamais deixar o espírito alegre arrefecer.
Quando for à praia leve-amasaí não espere muito de sua bengala. Ela penetra na areia, e no mar afunda mais ainda. Então tira-lhe o equilíbrio, o que não se pode deixar acontecer. Seu esforço para manter o equilíbrio provoca grandes oscilações no corpo, parecendo que vai cair. Já me aconteceu, e eu tanto balancei na busca do equilíbrio que, felizmente, acabei me equilibrando e abanei os braços e as pernas para comemorar. O casal perto de mim vibrou com minhas manobras e gritou:
- Parabéns, você é um grande dançador de praia!!!
Que lindo! Confundiram minha ginástica de sobrevivência com um "firulete" de tango, talvez. Eu gostei, ora! Até agradeci, dei mais dois passos e desta vez caí na areia quentíssima. Levantei rápido e felizmente o casal não viu meu vexame. Só viram meu acerto anterior. Nessa caminhada na praia eu não a levei. Talvez por isso, levei uma queda dentro da água do mar. Imagina se fosse na calçada, cabeça batendo no cimento. Por isso não largo mais ela:minha bengala.
Já me considero, depois de vários treinos e longas caminhadas, mais apto a andar com ela. Jamais levei uma queda, salvo a citada anteriormente, na praia. De resto estou inteiro, o que me dá confiança e alegria. Mas crescentemente preocupado com outra questão, embora sobre isso não quisesse que o fato se tornasse público.
Coisas da chamada idade avançada. Eu queria saber era se, mesmo com o corpo balançando e sujeito a sustos, eu poderia viver tranquilamente, observando os limites prescritos por ela própria. Segurar bem a bengala, evitar deslizes e manter os pés firmes no chão. E assim recomeçamos a jornada, eu e ela. Já mais acostumado com suas exigências.
Conversei com um amigo que já era veterano do problema. Usava ela, a bengala, há pelo menos dez anos, conforme explicou. Mas eu queria saber de detalhes mais apimentados. Preocupado com o vai e vem da perna, e pensando nas carências que poderia passar minha companheira na vida em comum, fui direto ao ponto.
Peguntei-lhe se em todos esses anos passados vinha conseguido manter a vida amorosa em funcionamento. O chamado sexual intercourse. No fundo, a chamada transa. Ou, cada um fale como quiser. Ele foi claro na resposta:
- Bobagem cara, não se assuste. Você vai poder continuar transando sim, mas haverá um desconforto.
- E qual é?
- É que você vai ficar caindo da cama várias vezes.
Ôpa, ôpa! Ando preocupado, desde então. Não só comigo, mas com a minha companheira, pois não sei se ela conseguirá realmente me puxar para cima da cama. Neste caso, trata-se da companheira física. Pode até resultar numa queda dupla, como dois pombinhos apaixonados. Risco grande pela frente. E neste caso, obviamente, eu não estaria usando minha ela bengala.
Mas, sempre em frente. Acostumar-se com a bengala, suas exigências e desempenho. Ninguém pode desistir de recuperar as suas pernas. Ou qualquer outro órgão do ser humano. É um instrumento útil. A amizade cresce entre os necessitados e a fama começa a surgir. A bengala do colega, todos lembram. Aproveitei para ler algumas de páginas de um livro que sempre carrego comigo.
Passava uma garota simpática que viu minhas acrobacias, e fui caminhar um pouco. Sem ela-bengala, para exercitar a pernoca. Apanhei a bengala, ela me viu. Dei uns passos, ela se aproximou. Resolvi andar um pouco sem a bengala, disse. A garota ainda me olhava, curiosa. Fui gentil.

-Quer dar uma voltinha?

- Quero sim, respondeu.

Apenas mostrei como segurar a bengala. Ela gostou e deu um longo passeio no parque. Uma esportista. Se acostumou logo e sentiu as pernas descansadas.
Continuamos juntos e felizes, eu e elas.

** José Fonseca Filho é jornalista e pre-poeta
Imagem: Retrato do Dr. Gachet - Vincent van Gogh





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