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O escriba sem juizo - Guillermo Piernes

20/09/2023 00:00




­O escriba sem juizo

 de Guillermo Piernes ** 

No elegante bar a beira do Potomac, Jardiel recebeu o envelope que chegou com um motoqueiro. Não o abriu o envelope imediatamente. Sabia quem o tinha enviado e estava certo do teor do conteúdo.

Pediu um Bourbon, servido generosamente pelo seu amigo de vários anos que trabalhava como barman, apenas nas quartas-feiras, no bar perto do Key Bridge, em Georgetown, o charmoso bairro de Washington D.C.  Bebeu lentamente, enquanto olhava a Lua brilhando sobre as ondas suaves do rio, quase um lago nessa quente noite de primavera.  

Nessa noite não ligou para as notícias. Tinha sido providencial ter cancelado as reunioes para essa quarta-feira. Era considerado um excelente lobista do Congresso, especializado em gestões para afroxar restrições para produtos de três países sul-americanos, porém teria preferido ser escritor. Ser um escriba esforçado já lhe bastava. Essa noite nada de negócios, conversas políticas e técnicas. 

Essa noite nada profissional importava. Nada para ele era mais importante do que saber que aconteceria com seu amor profundo por uma mulher pela qual que valia a pena dar a vida. Uma mulher tão apropriada para ele que pensava não podia existir, até cruzar no seu caminho.

Pediu um segundo Bourbon. Seu amigo mandou umas torradas com queijo brie, quando viu Jardel beber em quatro tragos o segundo whiskey de Kentucky, com o envelope nas mãos.  

Sim, era a carta de Gina, a mulher que tinha dado brilho a seus olhos, a quem amava como nunca tinha amado. "Aqui da minha cadeira na varanda procuro um caminho para uma relação entre nós que começou com uma troca de análises literárias e foi ganhando espaço com a troca de mensagens a respeito do cotidiano, pensamentos, sentimentos...sempre mantendo o caráter de amizade...".

Pediu um terceiro bourbon, que chegou acompanhado por uma garrafa de água com gás sem pedir-lha. Jardel sempre sentiu que apareciam anjos em cada momento difícil da sua existência. Este era um deles.

Seguiu com a leitura da carta "... tudo mudou, vem mudando, perigosamente ... deixei-me envolver, provoquei e iniciei um processo que sei qual serão, inevitavelmente, os próximos passos".

Jardiel levantou da mesa e foi ao banheiro. Lavou seu rosto. Ao voltar topou com um senador e um lobista conhecidos. Ficou na mesa com eles o tempo mínimo admissível para um profissional traquejado e voltou a sua, onde estava à carta aberta, com a bebida sobre ela para evitar que um golpe de vento a mergulhasse no Potomac. Talvez fosse melhor.

Voltou a leitura: "Um envolvimento amoroso entre nós, que poderia ser uma relação entre adultos, descompromissada, leve, cada um com sua vida e passando bons momentos juntos, para mim passa pela premissa: ambos livres, sem companheiros fixos. No momento, essa realidade é só do meu lado, não do seu. Isso, para mim, torna impossível levar em frente nossos encontros".

Jardiel sempre admirou essa escritora sensível, bela, elegante, irresistível, com um raciocínio sempre irrefutável. Nunca ele tinha sentido um amor tão grande como sentia por ela. Até escreveu poemas dignos de um adolescente perante seu primeiro deslumbramento amoroso, ridículos para um homem maduro. Passou várias noites em claro pensando na sua silhueta fina, seus olhos negros pícaros e penetrantes que sabiam ler a sua alma, na sua boca de labios de baton de cores suaves, que sempre tinham a resposta certa ou um comentário inteligente.  

Cada linha de Gina era uma facada que penetrava fundo. "Não vou, de forma alguma, estabelecer uma relação furtiva com você, às escondidas de sua companheira, com desculpas para me ver... Não, nada disso para mim é aceitável".

 As lágrimas corriam no rosto de Jardiel. Foi difícil ler o parágrafo final "Reflita sobre tudo que escrevi e me diga se não tenho razão, meu escriba sem juizo... Estarei aqui hoje e sempre com todo o carinho, cumplicidade, admiração, mas respeitando a mim mesma. Amor também é isso...".

Lógico que ela tinha toda a razão, como sempre. Ele a seguiria amando, como nunca amou. Pela sua idade sabia que jamais voltaria a amar tanto. Pediu a quarta dose, que seu amigo barman objetou diretamente: "Você vai ficar mais bêbado. Olha para tua cara. Um desastre".

Jardiel estava inconsolável, porem precisava seguir enfrente. Como sempre fez ao derrapar na vida. Os fracos se entregam. Ele era forte, era o que dele falavam. Desta vez Jardiel duvidava que seria forte o suficiente. Ele insistiu e ganhou a quarta dose. Precisava dar a explicação que o resgatasse do buraco onde tinha despencado. Foi fácil encontrá-la. Era simples. 

Ele era um macho velho que num pico de testosterona achou uma fêmea de ancas gostosas, pele suave, coxas macias, na primavera, estação de acasalamento preferido pelos mamíferos. Apenas uma reação química primaria ao feromônio certo. Somente queria puro sexo. Apenas um macho que buscava alivio, sem ligar no prazer da fêmea, nem prestar atenção a outros atributos que não fossem exclusivamente sexuais. Pronto. Explicado. Resolvido. 

A noite estava bem avançada. Precisava voltar para sua casa em Falls Church, do outro lado do Potomac em Virginia, para a rotina certa, sem emoção, paixão ou brilho. Acabou a quarta dose e pediu a conta.

Quando o amigo barman chegou com a conta, o encontrou com a cabeça apoiada na mesa, chorando como uma criança. O barman imediatamente deu meia volta e pegou um pano para passar no antigo balcão de nogueira.   

** Guillermo Piernes: Escritor, jornalista
* Pintura ao óleo Key Bridge, Georgetown, Washington DC


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