Poemas
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14/12/2025 00:00

O abismo de onde viemos
Hyago S.C **
Antes, era uma alegria absurda.
Daquelas que parecem mentir para a realidade.
Uma presença tão intensa que doía no corpo,
como se gostar demais fosse um excesso
que o organismo não soubesse administrar.
Havia algo nos seus olhos que me atravessava,
um brilho que se refletia nos meus
e criava a ilusão de permanência.
E então, desapareceu.
Não de forma épica.
Não com ruído.
Mas como uma gota d´agua escorrendo de uma pia velha:
comum, indiferente, inevitável.
Não sei exatamente quando. Nem por quê.
Não tenho respostas. Só suspeitas.
Talvez tudo tenha se rompido naquela noite
em que o sexo ultrapassou qualquer limite conhecido.
Foi bruto, intenso, carregado de palavras que não sobrevivem à luz do dia.
O prazer veio em excesso, virou os olhos, dissolveu o tempo e,
logo depois, me lançou para um lugar onde eu não queria estar.
Uma outra dimensão.
A da lucidez.
É estranho como o orgasmo, esse instante vendido como ápice da vida,
às vezes funciona como retorno forçado à realidade.
Como se o sexo fosse apenas uma miragem:
um mundo ideal que não dialoga com o depois.
O ato termina, e somos devolvidos ao que somos, sozinhos,
centrados em nós mesmos, desconfortavelmente humanos.
Por que tudo se quebra depois?
Por que a magia não resiste ao corpo saciado?
Talvez seja isso: o desejo precisa da falta.
E o sexo, ao cumprir sua função,
desmonta o encantamento que o criou.
Antes, havia ansiedade.
Noites mal dormidas.
A urgência de estar junto
sem fazer nada além de existir,
observar, compartilhar o silêncio.
Havia algo sagrado na espera.
Depois, restou o peso.
O cansaço.
A estranheza.
O que parecia infinito revelou-se breve.
No fim, talvez paixão e amor não passem disso:
desejos individuais buscando espelhos.
O outro não como centro, mas como instrumento.
Um complemento, nunca essencial.
Talvez sejamos assim.
Talvez sempre tenhamos sido.
Vivemos em um mundo doente.
Renato Russo não exagerou.
Somos pequenos, egoístas,
especialistas em usar pessoas
para preencher vazios que nem compreendemos.
Falamos de amor, mas praticamos carência.
Falamos de conexão, mas buscamos alívio.
Nossos orgasmos não jorram afeto.
Escorrem ego.
Deixam rastros de silêncio, experiências mal resolvidas,
encontros que não sabem continuar.
E então voltamos.
Sempre voltamos.
À realidade que não suspende seu curso
por causa das nossas fraturas internas.
À vida que não pausa para a nossa decepção.
Ao mesmo ponto de onde saímos, o abismo.
A felicidade, quando vem, é empréstimo.
Nunca posse.
Um bônus raro em meio ao caos cotidiano.
E o amor, por mais intenso que seja, não escapa dessa lógica.
Ele também acaba.
Ele também falha.
No fim, a verdade, dura, indelicada é que a queda não é exceção.
É regra.
Sempre retornamos ao abismo de onde viemos.
** Hiago S.C. - Advogado
* Pintura "Caminhante sobre o mar de névoa" - Caspar David Friedrich
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